Cerimônia ao Sol - Casapueblo

Uma volta completa, um novo ciclo

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2/24/20255 min ler

Primeiro dia, uma bicicleta alugada, 7 km a serem percorridos desde o hostel que estava hospedada para assistir um dos mais icônicos pores do sol de Punta del Leste. Foi isso que fiz, pedalei por entre carros passando perto do acostamento, a visão da orla das praias e da Laguna Del Diario do outro lado. Mais algumas subidas e descidas, lá estava eu na CasaPueblo. Enquanto visitava o museu, esperava para assistir a cerimônia do sol. 15 min antes do por do sol, começa a narração de um poema por Carlos Páez Vilaró.

"Bem-vindo, Sol…!

Outra vez sem anúncio vens nos visitar.

Outra vez em tua longa jornada desde o começo da vida.

Bem-vindo, Sol…!

Com a barriga carregada de ouro fervendo para repartir entre vilas e casarios, capelas rústicas, vales, bosques, rios ou pequenos povoados esquecidos.

Bem-vindo, Sol…!

Ninguém ignora que pertences a todos, mas que preferes oferecer teu calor aos mais necessitados, aos que precisam de tua luz para iluminar seus casebres, aos que recebem de ti a energia para enfrentar o trabalho, aos que pedem a Deus que nunca lhes faltes, para enriquecer os plantios e garantir as colheitas.

Porque tu, Sol, tu és o pão dourado da mesa dos pobres.

De meu terraço te vejo chegar todas as tardes como um aro de fogo girando através dos anos, preciso, assíduo, animando minha filosofia desde o dia em que sonhei erguer em CasaPueblo, e depositei entre as pedras meu primeiro tijolo.

Recordo que era um dia ardente de tempestade, o mar trocara o azul por um acinzentado vaidoso, no horizonte um veleiro ancorado corrigia o rumo para driblar a tempestade, o céu se enchia do grasnar de corvos em fuga, a serra se penteava com a ventania que agitava a doninha e o coelho.

Mas, de repente, como um anúncio sobrenatural o céu se perfurou e apareceste.

Eras um sol nítido e redondo, perfeito e delineado, posto sobre o cenário de minha iniciação com a força sagrada de um vitraux de igreja.

Desde esse instante senti que Deus morava em ti, que em tua forma modelava a fé, e que por meio de teus raios a transmitias por todos os lugares por onde passavas.

Os mesmos braços de ouro que ao te espreguiçares iluminam o céu, ao te deitares de lado aquecem as serras ou apontando para baixo fazem lâminas no mar.

Bem-vindo, Sol…!

Como gostaria de ter compartilhado tua longa trajetória ofertando luz, porque pelo caminho acariciaste a vida de mil lugarejos, compartilhaste alegrias e tristezas, conheceste a guerra e a paz, alentaste a oração e o trabalho, acompanhaste a liberdade e fizeste menos dura a escuridão dos presídios.

Por onde passas, Sol, adormecem os lagartos, despertam os girassóis e os galos cantam.

Se lambem os gatos vadios, os cães embromam e a toupeira se ofusca ao sair da cova.

Por onde passas, Sol, há suor na fronte do trabalhador e nos corpos das mulheres bronzeadas que pegam o cântaro no barraco.

Com teu pulsar comoves o mar, dás música à semeadura, à fábrica e ao mercado.

Por onde passas, Sol, correram desabalados búfalos e antílopes, se espreguiçou o leão, se assombrou a girafa, deslizou a serpente e voou a borboleta.

Por onde passas, Sol, cantou a cotovia, voou a águia, despertou o morcego e emigrou o albatroz.

Bem-vindo, Sol…!

Obrigado por voltar a animar minha vida de artista.

Porque fizeste menos só minha solidão.

É que me acostumei a tua companhia e se não te tenho, te busco onde quer que estejas.

Por isso te reencontrei na Polinésia, quando te coroaram rei dos arquipélagos de nácar e dos recifes de coral, ou também na África, quando davas ânimo a suas revoluções libertárias e te refletias no espelho de seus escudos tribais para injetar-lhes coragem.

Te olho e vejo que não mudaste, que és o mesmo que os astecas reverenciaram, o mesmo de quando peregrinei pintado pela América, o que envolveu a Amazônia misteriosa e secreta, o que me iluminou os caminhos até o Machu Pichu sagrado do Peru, o dos vales patagônicos ou dos territórios dos Sioux ou dos Comanches.

O mesmo sol que me levou a Bornéus, Sumatra, Báli, às ilhas musicais ou aos ardentes areais do Saara.

Diferente do relâmpago que apenas projeta na noite chicotadas de luz, de teu reinado planetário tuas centelhas continuam ativas, permanentes.

Às vezes a travessura das nuvens esconde teu esplendor, mas quando isso acontece, sabemos que estás ali, brincando de esconde-esconde.

Outras vezes, ao contrário, te vemos sorrir quando as andorinhas ou as gaivotas te usam como papel para escrever as frases de seu voo.

Obrigado, Sol, por invadir a intimidade de meu entardecer e banhar-se em minhas águas.

Agora serás a luz dos peixes e seu secreto universo submarino.

E também dos fantasmas que habitam o ventre dos barcos submersos em trágicos naufrágios.

Entre ventanias e temporais, cruzando ciclones e tempestades, chuvas e tornados, conseguiste chegar até aqui para ir-te silenciosamente diante de nossos olhos.

Porque tua missão é partir para iluminar outros lugares.

Lavradores, estivadores, pescadores te esperam em outras regiões onde a noite desaparecerá com tua chegada.

E como respondendo a uma campainha mágica despertarás as cidades, acompanharás as crianças à escola, farás voar a felicidade dos pássaros, convocarás para a missa.

Quando chegares, se animará o andaime com seus operários, cantarão os ambulantes nas feiras, a margem do rio se encherá de lavadeiras e entrará a alegria pela janela dos hospitais.

Até logo, Sol…!

Quando num instante te fores de vez, morrerá a tarde. A nostalgia tomará conta de mim e a escuridão entrará em Casapueblo.

A escuridão – com seu apetite insaciável penetrando por debaixo das minhas portas, pelas janelas ou por quantas fendas encontre para infiltrar-se em meu ateliê, abrindo espaço para as mariposas noturnas.

Até logo, Sol…! Eu te amo…

Quando era criança queria alcançar-te com minha pipa.

Agora que sou um velho, me resignoa te cumprimentar enquanto a tarde boceja por tua boca de vime.

Até logo, Sol…!

Obrigado por nos provocar uma lágrima ao pensar que iluminaste também a vida de nossos avós, de nossos pais e a de todos os seres queridos que já não estão junto a nós, mas que te continuam a te desfrutar de uma outra altura.
Adeus, Sol…!

Amanhã te espero outra vez.

Casapueblo é tua casa, por isso todos a chamam de casa do sol, o sol de minha vida de artista.

O sol da minha solidão.

É que me sinto milionário em sóis, que guardo na arca do horizonte."

Fonte: https://casapueblo.com.uy/

Encontro-me entre lágrimas geradas pelo o poema e o cenário diante de mim, sinto o desejo de compartilhar o momento com alguém. Vejo casais, idosos e crianças apreciando a cena comigo. E, ao mesmo tempo, me sinto feliz, não tenho inveja dos casais, fico feliz por eles, fico feliz por mim. Estou alí, apreciando cada instante como eles, sentindo os últimos raios do dia na minha direção como um presente de aniversário, presente que eu mesma me dei. Terminado o espetáculo, volto. Mais 7 km pedalando, sentindo o vento nos cabelos e o encantamento do momento que presenciei, me sinto livre. No outro dia, completaria mais uma volta completa ao redor do sol, um novo ciclo.

Créditos: Foto Original - Museo casapueblo, Punta Ballena, Uruguai